Rede de diálogos entre ecologias da academia e ecologias indígenas
A partir de 2024, o Serrapilheira começou a olhar também para outras formas de conhecimento que vão além da academia. O objetivo é, sobretudo, amadurecer seu entendimento da chamada ciência indígena e buscar a melhor forma de contribuir para a valorização desses saberes historicamente negligenciados.
Criamos, assim, uma rede que reúne cientistas indígenas e ecólogos atuantes na academia. Ao longo de 2024, realizamos conversas semanais para buscar um diálogo de igual para igual entre os dois sistemas de conhecimento, a partir de uma ética solidária de pesquisa e o desenvolvimento de projetos pautados pela colaboração.
Apoiamos, ao todo, nove projetos em ciência indígena: sete pesquisas em ecologia de doutores e doutoras indígenas, que partem de suas próprias epistemologias, e dois projetos institucionais.
São projetos aplicados, que alavancam a ciência ocidental a partir de metodologias indígenas centradas nos territórios, e oferecem soluções inovadoras para proteção da sociobiodiversidade. Conheça todos os projetos abaixo.
Apoiamos, ainda, um programa de iniciação científica para alunos indígenas em três núcleos diferentes: Amazonas, Paraíba e Santa Catarina.
Por que ciência indígena
As populações indígenas são produtoras de um conhecimento ambiental milenar que, com éticas e modos próprios, mantém afinidades essenciais com o método científico desenvolvido pela academia. O modelo de conhecimento indígena é complexo, dinâmico, sistemático, independente e anterior ao método da academia.
Enquanto as sociedades ocidentais nos levam a uma emergência climática e destruição da biodiversidade sem precedentes devido ao consumo descontrolado de recursos naturais, os povos indígenas detêm o conhecimento de milhares de anos de como manejar ecossistemas mantendo-os de pé. Se buscamos o desenvolvimento sustentável a partir de uma coexistência mais harmônica com a natureza, o diálogo com eles é imprescindível.
A demora da academia em abrir espaço a outros saberes não expõe apenas uma inércia histórica: indica o quanto perdemos em conhecimento. Por isso, apostamos em ouvir outras respostas e estimular outras formas de indagação. Acreditamos que conhecimento somado a conhecimento é igual a mais conhecimento, o que é igual a mais ciência.
“Na medida em que entendemos as diferenças entre modelos de conhecimentos, seja científico, seja indígena, e entendendo que cada modelo tem seus próprios conceitos, nós podemos, sim, dialogar.”
João Paulo Lima Barreto, antropólogo do povo Tukano
Projetos apoiados
Aline Churiah Puri Rochedo
Indígena do povo Puri, da Serra da Mantiqueira (RJ), é doutora em história cultural
Projeto: Araucária e a relação histórica com o povo Puri de Amana Tykyra
Bárbara Nascimento Flores
Indígena do povo Borum-Kren, de Minas Gerais, é doutora em desenvolvimento e ambiente
Projeto: Como a reterritorialização do povo Borum-Kren pode induzir cascatas socioecológicas e contribuir para a restauração da memória biocultural e de paisagens multifuncionais?
Elizângela Cardoso de Araújo Silva
Indígena do povo Pankararu, de Pernambuco, é doutora em serviço social
Projeto: Alimentação em Pankararu: quais são as interações entre ecologia e cosmologia nas dinâmicas das comunidades animais, vegetais e tradição indígena alimentar?
João Rivelino Rezende Barreto
Indígena do povo Tukano, do Amazonas, é professor na Universidade Federal de Santa Catarina
Projeto: Ecologia Indígena: retroalimentação e conectividades da roça na aldeia São Domingos Sávio
Alexsandro Cosmo de Mesquita
Indígena do povo Potiguara, da Paraíba, vive em São Paulo e é doutor em tecnologias da inteligência e design digital
Projeto: Quais são os modelos de gestão e governança utilizados por povos indígenas e como eles contribuem para a sustentabilidade?
Elison Floriano Tiago
Indígena do povo Terena (MS) é pós-doc na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Projeto: Quais são os Etnoconhecimentos dos terenas sobre as abelhas nativas da região do Pantanal?
Victor Felix
Indígena do povo Potiguara (PB) é pós-doc na Universidade Federal da Paraíba
Projeto: A ecologia de saberes sobre o solo pode contribuir com o avanço da ciência do solo e os desafios globais?
Programa de Iniciação Científica
Como parte das ações de incentivo à ciência indígena, apoiamos, também, um Programa de Iniciação Científica voltado para alunos indígenas em três núcleos diferentes: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
UFSC:
O Programa de Iniciação Científica Indígena na UFSC é conduzido pelo projeto Useflora. O objetivo é formar cientistas indígenas na área de ecologia, fomentando práticas interculturais que possam amplificar diálogos entre sistemas de conhecimento indígenas e acadêmicos, atuando na coprodução de conhecimentos, na valorização e no reconhecimento das formas de produção de conhecimentos indígenas. São cinco projetos, que recebem duas bolsas: uma para o estudante indígena de graduação e uma para o especialista indígena residente no território. Saiba mais aqui.
Recursos: R$ 300 mil
UFAM:
Intitulado “Embaixadores Culturais: ativar para semear os conhecimentos indígenas”, o Programa de Iniciação Científica Indigena na UFAM é conduzido pelo Embiara, e os selecionados serão integrados à equipe do projeto. O perfil dos bolsistas será definido de acordo com os eixos temáticos e as demandas em cada uma das comunidades ou povos onde atua. Os bolsistas poderão ser tanto estudantes letrados, com experiência formal acadêmica, quanto conhecedores não treinados na ciência convencional.
Recursos: R$ 300 mil
UFPB:
O Programa de Iniciação Científica Indígena na UFPB, conduzido pelo professor Rafael L. G. Raimundo, é voltado à área de ecologia básica e aplicada, e prevê o pagamento de oito bolsas por um período de três anos. O objetivo é aproximar os estudantes de graduação indígenas da pesquisa, aumentando seu potencial de ingresso na pós-graduação. Busca, também, ampliar o diálogo entre as ciências acadêmicas e indígenas, por meio da formação de novas lideranças científicas indígenas.
Recursos: R$ 300 mil
Como conectar a ciência indígena e a ciência da academia?
Participaram da rede
– o antropólogo João Paulo Lima Barreto, do povo Tukano, de São Gabriel da Cachoeira/AM. É pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Universidade Federal do Amazonas (Neai/ Ufam), professor-visitante da Ufam e criador do Bahserikowi – Centro de Medicina Indígena da Amazônia;
– a ecóloga Carolina Levis, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina e do Brazil LAB na Universidade de Princeton/ EUA. Ela investiga como os povos indígenas e as comunidades locais têm moldado os ecossistemas tropicais e sua biodiversidade;
– o biólogo André Junqueira, consultor independente que desenvolve pesquisas interdisciplinares nas áreas de etnoecologia e ecologia histórica. Ele busca promover diálogos entre o conhecimento indígena e ocidental para a conservação da diversidade biocultural;
– o ecólogo Rafael Raimundo, professor na Universidade Federal da Paraíba, que pesquisa redes socioecológicas – ou seja, a sincronização de redes ecológicas e socioeconômicas para alcançar a sustentabilidade;
– o antropólogo Silvio Sanches Barreto, do povo Bará, de São Gabriel da Cachoeira/AM, membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai/Ufam) e do Colegiado Indígena do PPGAS/Ufam;
– a escritora e roteirista Adriana Lunardi, que acompanhou as discussões para colocar em palavras as trocas de conhecimento.
– a equipe de Ciência do Serrapilheira: a diretora Cristina Caldas e os gestores Kleber Neves e Michel Chagas.

Por que criamos a rede
Ao longo da nossa primeira chamada destinada a cientistas negros e indígenas, em 2023, compreendemos a necessidade de reaprender a partir de singularidades do processo de seleção e, também, a reconhecer os desafios na implementação de iniciativas exclusivas para grupos sub-representados.
As críticas de pessoas negras e indígenas quanto ao quesito de proficiência em língua inglesa constante no edital nos fizeram entender que tal exigência excluía, por si só, uma parcela importante de prováveis candidatos. Com isso, suprimimos a cláusula e publicamos uma nota reconhecendo o erro.
Essa experiência despertou a certeza de que, enquanto a diversidade na ciência nos faz refletir sobre questões raciais e de gênero, a questão indígena, de complexidade bastante diferente, nos pedia amadurecimento.
Com o processo de seleção em curso, nos dispusemos tanto a ouvir o que cientistas indígenas têm a dizer quanto a entender de que forma podemos contribuir com as suas demandas.
A partir de conversas com todos os candidatos indígenas da chamada, bem como com os revisores, decidimos apoiar a criação, em 2024, de uma rede de diálogos entre ecologias da academia e ecologias indígenas para discutir os desafios relacionados à produção de conhecimento da área.
“Para além de criar espaços de valorização do conhecimento indígena, vai ser preciso ‘reflorestar a mente da sociedade brasileira’. Quem sabe assim os indígenas passarão a ser vistos como protagonistas na produção de conhecimento.”
Cristina Caldas, diretora de Ciência, em artigo na Folha de S.Paulo