Clarice Cudischevitch
A ciência foi utilizada na construção do racismo no Brasil, mas tem um papel essencial na mudança desse cenário. Foi o que mostraram as discussões sobre diversidade com a filósofa Sueli Carneiro e a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz durante o 4º Encontros Serrapilheira. O evento reuniu 30 pesquisadores grantees entre os dias 8 e 11 de dezembro em Itatiba, interior de São Paulo.
Sueli Carneiro abriu o encontro mostrando como, historicamente, a ciência foi uma das responsáveis pela ideia de superioridade e inferioridade entre os diferentes grupos humanos. Fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra e ativista feminista e antirracista, ela destacou que estudos do século 19 acerca da frenologia e da craniologia, campos que analisavam características fenotípicas, como o tamanho do crânio, em pessoas brancas e negras, foram usados como “provas” de hierarquias entre as raças.
A relação entre ciência e racismo, no entanto, não está restrita a exemplos antigos. Um caso famoso de má conduta científica é o do estudo da sífilis de Tuskegee (EUA), que, entre 1932 e 1972, utilizou 600 homens negros (399 com sífilis e 201 saudáveis) como cobaias humanas, sem consentimento, para analisar a evolução da doença sem que recebessem o tratamento adequado.
Carneiro citou, ainda, o caso da norte-americana Henrietta Lacks. Negra e de origem pobre, em 1951 ela teve células tumorais doadas involuntariamente, a partir de uma biópsia não autorizada feita durante uma internação no hospital Johns Hopkins por conta de um câncer avançado. “Suas células, que originaram a linhagem celular HeLa, vêm se multiplicando em laboratórios do mundo todo e são comercializadas a altos valores.”
No Brasil, o racismo se manifesta, por exemplo, em debates sobre cotas, quando com frequência é evocada a falácia da raça biológica que alega que, geneticamente, não há raças humanas. “Isso não nos autoriza a dizer que não existe racismo”, disse Carneiro. “As desigualdades entre negros e brancos no mercado de trabalho, acesso à saúde e educação mostram que a raça tem uma existência social por causa do racismo. Miscigenação genética não é um antídoto contra o preconceito.”
Lilia Schwarcz acrescentou que a ciência brasileira contribuiu para a construção do mito da democracia racial, que afirma não existir discriminação e desigualdade entre raças no país. Teorias como a do Darwinismo social, que defendiam a existência de uma única raça humana, e que concluíam que sociedades “evoluem” naturalmente para estágios superiores de organização social, tiveram grande sucesso no Brasil.
Para Schwarcz, o perfil pouco diverso da ciência é uma manifestação do racismo estrutural que marca o país. “No Brasil, as pessoas negras têm posições assimétricas na estrutura social e não são contempladas nas disciplinas científicas – basta ver o público que frequenta os eventos do Serrapilheira, majoritariamente branco, de origem europeia.”
Por acreditar que a diversidade promove uma pluralidade de pontos de vista que é essencial para a qualidade da ciência, o Serrapilheira lançou o “Guia de boas práticas em diversidade na ciência”. O documento, elaborado por um comitê de especialistas na área, traz orientações aos cientistas que desejem formar grupos de pesquisa mais diversos.
Além disso, os grantees do instituto contemplados com o apoio de R$ 700 mil, na segunda fase do financiamento, têm a opção de receber um bônus de R$ 300 mil para investir na formação e inclusão de grupos sub-representados na ciência – principalmente pessoas negras e mulheres, nas áreas em que elas são minoria. O objetivo é contribuir para a mudança desse ambiente científico historicamente dominado por pessoas brancas, o que reflete, inclusive, nos processos seletivos do Serrapilheira.
O caminho é longo, mas possível. “O país que foi capaz de escrever a mais bela fábula sobre relações raciais, que é o mito da democracia racial, pode ser capaz de realizá-la de fato”, encerrou Sueli Carneiro.
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