O matemático francês Étienne Ghys fascinou plateia lotada de estudantes em palestra no ICM 2018
Clarice Cudischevitch
Em um floco de neve, Étienne Ghys vê matemática, física e arte – resumindo em uma palavra: ciência. Divulgador apaixonado desse campo do conhecimento, o francês meio brasileiro (têm relações com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada há quase 40 anos) fez uma inspirada palestra sobre a geometria dessas “joias que caem do céu” durante o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM), promovida pelo Instituto Serrapilheira e pelo IMPA.
Na plateia, um público composto principalmente por medalhistas de ouro da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) – e por muitas pessoas sentadas no chão, por conta da lotação máxima – assistiu entusiasmado à apresentação. Pesquisador em sistemas dinâmicos da Escola Normal Superior de Lyon, Ghys é um expert em falar sobre matemática de forma acessível. Dirigiu séries de animação sobre a teoria do caos e a quarta dimensão, o que lhe rendeu prêmios como o de Disseminação do Instituto Clay (EUA).
Na palestra, fez uma referência ao filme “Bye Bye Brasil”, de Cacá Diegues, ao brincar sobre “o mais íntimo desejo dos brasileiros. Não é fartura, não é progresso. É a neve.” Para Ghys, flocos de neve são objetos pequenos que guardam muita beleza e mistério. Simétricos, mas sempre diferentes uns dos outros. Discorreu, então, sobre a história da investigação em torno deles por meio de 11 personalidades – seus “heróis”.
O primeiro, o bispo de Uppsala, na Suécia, quis demonstrar, no século 16, que os países do Norte não eram lugares bárbaros e tinham uma cultura rica. Por isso, escreveu o livro “História dos povos nórdicos”, a primeira publicação de imagens de flocos de neves. “Ele não era cientista e não observou bem, então as figuras são todas erradas; a imaginação dele não tinha nada a ver com a realidade”, comentou Ghys. “Mas ele tinha boas intenções, foi o primeiro a tentar descrever a neve.”
Simetria hexagonal
O segundo herói, seu favorito, é Johannes Kepler (1571-1630), que estudou os planetas do Sistema Solar. “Vivia na fronteira entre o mundo antigo, das religiões, e o novo, da ciência, e tinha um pé de cada lado, com o propósito de entender a obra de Deus através da matemática e das simetrias.” Ghys conta que Kepler, ao observar um floco de neve caído em sua mão, achou tão bonito que decidiu dar de presente para um amigo. “Mas não dava para embrulhar, então decidiu escrever um livro descrevendo os flocos de neve e oferecer a ele.”
O livro de 25 páginas se chamou “Um presente de ano novo de neve hexagonal”. “Ele não tinha lupa e não enxergava bem, mas, mesmo assim, observou as principais propriedades dos flocos, fez perguntas, buscou respostas e usou o poder do raciocínio. Era um matemático excepcional.” Sua primeira observação está no título do livro: os flocos de neve têm seis pontas.
Questionou, no entanto, por que seis pontas. Na natureza, as flores, em geral, têm cinco pétalas. Os polvos, por sua vez, têm oito braços. Analisou, então, estruturas que também eram hexagonais, como os alvéolos de abelhas. E fez uma observação: quando coloca-se um círculo ao redor do outro (moedas, por exemplo), assim que houver seis deles, formarão uma estrutura perfeita, sem lacunas. Kepler cogitou, então, que os flocos de neve pudessem ser constituídos de minúsculos discos. “Na época, ninguém conhecia os átomos. Ele sabia que havia coisas pequenas, que chamou de glóbulos.”
A segunda observação de Kepler foi que os flocos são sempre diferentes entre si, mas simétricos. “Todos bonitos, com simetria de ordem seis, como se fossem uma pizza com seis fatias idênticas. Como é possível que os seis pedaços cresçam exatamente da mesma maneira?”, perguntou Ghys. “Kepler questionou se haveria algo dentro de suas estruturas que explicasse, ou seja, se os flocos teriam uma alma.” O astrônomo observou, ainda, que os flocos são planos, em vez de tridimensionais.
“Kepler tinha a honestidade de dizer que não entendeu e não sabia por que os flocos eram assim, mas tinha a certeza de que, algum dia, algum matemático iria entender”, ressaltou o francês. “E ele tinha razão. Quatro séculos depois, entendemos muito melhor, mas não tudo.”
Wilson Bentley (1865-1931) não foi cientista, foi artista. Nasceu no frio estado norte-americano de Vermont e dedicou a vida à neve. Foi a primeira pessoa a conseguir adaptar um microscópio a uma câmera e a tirar fotos de flocos de neve. “Graças a ele, o floco de neve entrou na nossa cultura e, hoje, o vemos até nos comerciais de Natal do Brasil”, apontou o matemático.
Dois físicos, William Bragg e Linus Pauling, confirmaram a intuição de Kepler ao entender a constituição atômica do gelo. Hoje, sabe-se que a molécula de água é constituída por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio e que, em altas temperaturas, as moléculas “dançam” de forma independente – é o vapor. Quando a temperatura baixa, as moléculas se aproximam e a água se torna líquida. E quando fica ainda mais frio, as moléculas quase param e a água vira gelo sólido.
O físico Ukichiro Nakaya, que estudou a neve durante 40 anos, foi o primeiro a criar flocos artificiais para estudá-los em laboratório. Foi responsável por classificá-los, pois, segundo Ghys, “cientistas gostam de fazer classificação quando não entendem algum fenômeno”. Hoje, há 121 tipos de flocos registrados. “Até hoje ainda não se entende por quê, ao mudar a temperatura em um ou dois graus, a forma do floco se altera completamente.”
Ghys ouviu perguntas curiosas de estudantes. Alguns queriam saber se havia outros elementos na natureza de estrutura hexagonal. Respondeu: “Não sei”. A uma aluna que perguntou por que os flocos são diferentes entre si, explicou com um conceito matemático famoso: a teoria do caos.
“O crescimento do floco é um processo caótico, e trajetórias diferentes geram resultados diferentes. Por isso os flocos são diferentes, mas têm as propriedades em comum, como as seis pontas. Todas as pessoas aqui são distintas, mas têm uma cabeça e dois pés.”
Alguns modelos matemáticos foram desenvolvidos para se tentar compreender melhor essas estruturas. “Não entendemos tudo sobre os flocos”, destacou Ghys. “Conhecemos a estrutura atômica do gelo, mas não sabemos por que funcionam os modelos matemáticos nem a física dos fenômenos. Ainda há muito o que fazer. Meu sonho é que algum medalhista desta sala continue essa pesquisa, e ele seria ainda mais bonito se fosse uma medalhista. Vamos torná-lo real. O cristal de gelo está cheio de perguntas fascinantes.”
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