A Covid-19 é uma doença nova e a maior parte das perguntas sobre ela ainda não tem resposta. A ciência, no entanto, caminha em direção a um entendimento cada vez maior de suas particularidades
No quinto webinar do Serrapilheira, conversamos com dois imunologistas sobre o que sabemos e não sabemos em relação a imunidade no âmbito do novo coronavírus: Thiago Carvalho, da Fundação Champalimaud, que escreve semanalmente na Nature Medicine sobre como a ciência está respondendo à pandemia, e Marcelo Bozza, professor de imunologia na UFRJ, que estuda inflamação e imunidade inata. A mediação foi conduzida Cristina Caldas, diretora de Ciência do Serrapilheira e também imunologista. Confira os destaques:
Memória imunológica: quem pegou a doença uma vez está protegido contra novas infecções?
Ainda não sabemos. A doença é nova, foi detectada pela primeira vez em dezembro do ano passado, então não temos tempo suficiente de estudos em laboratório para avaliar a memória imunológica diante do novo coronavírus. Estudar memória implica em esperar aquela resposta terminar, o organismo voltar ao estado basal e depois testar a resistência. “Ainda não passou o tempo necessário para acompanhar o que seria o ciclo de infecção e reinfecção dessa doença”, afirmou Thiago Carvalho.
Atualmente, estamos medindo o nível de anticorpos das pessoas, investigando se são neutralizantes do vírus (ou seja, bloqueiam a infecção), medindo a resposta imune celular dos indivíduos, analisando diversos dados em busca de evidências dessa proteção. Temos que esperar para avaliar se aquilo que podemos medir no soro e nas células dos sobreviventes se correlacionam de fato com a reinfecção ou não. Nesse contexto, estudos que acompanham profissionais de saúde (pessoas que são re-expostas o tempo todo) ao longo do tempo fazendo testes para identificar se eles sofreram novas infecções de Covid-19 são absolutamente centrais para entendermos se esse processo acontece ou não.
Podemos tirar conclusões a partir do que foi observado em outras doenças?
A história recente do SARS-Covid-1 e do MERS sugere que os anticorpos contra coronavírus na população têm uma certa duração; não parecem durar por anos e anos. Isso poderia indicar que, talvez após dois ou três anos, exista a possibilidade de novos ciclos de reinfecção, ou seja, infecção de indivíduos que haviam sido previamente infectados.
Ainda assim é difícil fazer interpretações a partir de surtos anteriores de SARS e MERS. Como estas doenças foram muito bem controladas do ponto de vista epidemiológico não houve ciclos de reinfecção, então não sabemos se haveria uma vulnerabilidade das pessoas para se infectarem novamente. O que podemos observar nos vírus causadores de gripes e resfriados é que, geralmente, há uma resistência dos anticorpos por algum tempo, mas ela não dura para sempre, e a reinfecção é possível após um período.
E os casos de pessoas que manifestaram uma aparente reinfecção no curto prazo?
Ao que parece, os quadros de supostas reinfecções que foram relatados até esse momento provavelmente são mais falsos positivos do que novas infecções. Tudo indica que, no curto prazo, o sistema imune dá conta de evitar novas infecções; a questão é se em dois ou três anos continuará impedindo. De todo modo, no caso de uma reinfecção o sistema imune vai responder de maneira bastante diferente do que na primeira vez. Ainda que a proteção dos anticorpos não seja absoluta e duradoura, as novas infecções tendem a ser mais brandas.
A imunidade de rebanho pode ser uma solução?
A imunidade de rebanho é a situação em que uma parcela da população torna-se imune a uma doença infecciosa (seja por meio da vacinação, seja porque já foi infectada) de forma que a dispersão da doença torna-se improvável, mesmo entre indivíduos não vacinados ou infectados. No caso da Covid-19, alguns grupos vêm propagando a ideia de deixar a população ser exposta ao vírus para que ele se espalhe e assim, supostamente, as pessoas se tornem imunes. Entretanto, adotar medidas nesse sentido sem que haja uma vacina é algo completamente equivocado.
O novo coronavírus tem uma taxa básica de reprodução entre dois e três casos, ou seja, cada indivíduo infectado vai infectar diretamente outros dois ou três – isso em uma população que é completamente suscetível à infecção. Considerando a taxa de letalidade da doença, se tivermos 70% da população infectada, estaríamos falando de um número inaceitável de mortes. “Expor as pessoas naturalmente a algumas doenças pode ser razoável – a caxumba é um exemplo -, mas no caso da Covid-19 não é”, afirmou Thiago Carvalho.
Sabemos que deixar a infecção se espalhar em uma população leva à morte de milhares de pessoas mesmo em países ou regiões com sistemas de saúde bem estruturados, como o norte da Itália. Ali, o que funcionou de fato foi o isolamento social. Por isso, é fundamental que ele se mantenha enquanto busca-se melhorar tanto a capacidade de rastrear os indivíduos infectados quanto os alvos terapêuticos. Isso requer tempo, mas já está acontecendo.
E no caso de uma vacina?
Quando dispomos de uma vacina, a imunidade de rebanho pode se tornar mais interessante. Se, por exemplo, a vacina funcionar bem em uma faixa etária mais jovem, mas não em pessoas idosas, ao vacinarmos o maior número de pessoas que respondam bem a esse processo de imunização vamos proteger também os indivíduos que apresentam uma imunidade menos eficiente, fazendo com que o espalhamento do vírus caia. “Mas, no curso atual da pandemia, a imunidade de rebanho seria uma catástrofe sem precedentes”, alertou Marcelo Bozza.
Já que a imunidade de rebanho não é solução, temos previsão de uma vacina?
A estimativa otimista é de 12 a 18 meses para que uma vacina contra o novo coronavírus possa ser administrada de forma segura na população. Isso porque, mesmo depois que a vacina fica pronta, é preciso esperar alguns meses para saber se ela efetivamente funciona ou não. Após esse processo, ainda há a complexa logística de se produzir milhões de doses e fazer chegar às casas das pessoas. Em uma perspectiva otimista, é possível que entre outubro e novembro já possamos ter uma ideia sobre se uma vacina em potencial é de fato eficaz.
Uma das maiores dificuldade é o fato de não haver uma base para a vacina contra o novo coronavírus (o Sars-Cov-2). Apesar de em 2003 ter acontecido uma pandemia de Sars-Cov-1, não houve um interesse global em produzir uma vacina contra ele, e os estudos pararam na fase 1 de ensaios clínicos.
É importante ressaltar que uma doença infecciosa não é patológica apenas em função de sua carga viral. A resposta imune dos pacientes tem uma contribuição relevante para a doença. Não sabemos, por exemplo, se uma pessoa com imunodeficiência vai ter mais suscetibilidade à infecção ou mais danos decorrentes dela. Temos algumas evidências – sabemos das complicações observadas em pacientes diabéticos, com doenças cardíacas e outras comorbidades -, mas muitas das perguntas feitas ainda não têm respostas.
“Quando há um número brutal de pessoas infectadas simultaneamente, surgem muitas questões interessantes e importantes do ponto de vista médico, mas não podemos mais ser pegos de surpresa. Dependemos de uma iniciativa política para que a saúde pública seja prioridade”, concluiu Marcelo Bozza.
Você pode assistir à gravação completa do webinar aqui.
Este foi o quinto webinar dentro da temática da pandemia do novo coronavírus organizado pelo Serrapilheira. Se você perdeu os primeiros, pode assistir às gravações em nossa playlist no Youtube.
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