Clarice Cudischevitch
O ouro, apesar de tóxico, tem uma atividade anti-inflamatória e antitumoral já conhecida. Em estudo publicado na revista Scientific Reports, essa substância foi aplicada de maneira pouco usual, utilizando planárias (uma espécie de verme achatado) como modelo pré-clínico in vivo para avaliação da sua bioatividade. O trabalho foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa do biólogo Rubens do Monte, grantee do Serrapilheira, em parceria com a equipe do Dr. Ricardo Zayas, da San Diego State University (EUA).
Complexos de ouro são estudados para o desenvolvimento de medicamentos contra doenças como câncer, infecções parasitárias e artrite reumatoide. A ideia de estudar sua atividade utilizando planárias partiu de um curso de genômica funcional e biologia de sistemas que Rubens do Monte fez na Inglaterra.
A planária é classificada como imortal por ter a capacidade de regenerar todos os seus tecidos indefinidamente. Se é cortada em três partes, elas se regeneram em uma semana dando origem a três novos indivíduos adultos. “Elas podem se reproduzir assexuadamente e sem envelhecer; é como se as células fossem jovens para sempre”, afirma o pesquisador do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas, em Belo Horizonte (MG).
O verme apresenta condições relativamente favoráveis para se cultivar: basta um recipiente com uma mistura de sais na água para eles viverem e pasta de fígado bovino para se alimentarem, sem a necessidade de um ambiente estéril, como ocorre com cultura de células. Por conta da aptidão de se renovar, a planária é um bom modelo para se estudar mecanismos relacionados à proliferação celular, o que interessou o grupo de pesquisa. “Como estamos interessados em elucidar mecanismos de ação de fármacos, decidimos implementar esse modelo em nossos estudos”, afirma o biólogo.
Rubens do Monte conta que os grupos de pesquisa que usam vermes como modelo são mais voltados a descobrir como funciona o processo de diferenciação de uma célula pluripotente (célula-tronco) em uma célula específica, como um neurônio ou fibra muscular. Entender esse processo pode ajudar a compreender algumas doenças humanas e a desenvolver ferramentas para melhorar a nossa capacidade de regeneração.
Assim, o grupo decidiu estudar o mecanismo de ação de complexos de ouro antitumorais usando planárias. O animal tem alguns genes que também existem em humanos, incluindo o p53, que, em mais de 50% dos cânceres, apresenta algum tipo de mutação. Em circunstâncias normais, o p53 é um gene supressor de tumor, mas, uma vez alterado, ele pode induzir a formação de tumores.
O que o grupo fez foi silenciar o p53 da planária, causando um desequilíbrio similar ao que ocorre no câncer para analisar a resposta do animal “doente” ao fármaco de ouro. Essa indução foi feita por meio de uma interferência de RNA, o que, no caso do verme, representa mais uma vantagem curiosa: “Normalmente, em outros modelos essa interferência deve ser feita por meio de uma microinjeção. Com a planária, basta misturar o RNA ao fígado de boi que elas comem e o RNA será absorvido em todo o corpo do animal. É muito prático”, comenta a doutoranda Luiza Tunes, primeira autora do estudo.
A expectativa era que o fármaco diminuísse o crescimento descontrolado das células e ajudasse o animal a sobreviver por mais tempo. “Isso foi realmente observado, mas também vimos que os compostos reduziram um tipo de morte celular programada que esperávamos que estivesse aumentada nas planárias tratadas”, destaca a doutoranda.
Ela explica que animais em que o p53 não está funcionando ativam outros mecanismos para tentar causar a morte das células tumorais. O mesmo acontece nas planárias, mas, quando tratadas com os complexos de ouro, elas apresentaram menor nível deste tipo de morte celular. “Concluímos que esses fármacos agem em um alvo que causa morte celular diferente do p53”, aponta Luiza Tunes, ressaltando que pode haver outros genes envolvidos nessa atividade.
Atualmente, nenhum outro grupo de pesquisa no Brasil trabalha associando planárias à quimioterapia. “O estudo da planária relacionada ao câncer é bem incipiente ainda no mundo, de modo geral”, conta Rubens do Monte, que espera que, com o tempo, esse modelo torne-se mais popular na pesquisa.
Conheça outra linha de pesquisa de Rubens do Monte:
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