Fonte: G1
A professora de geologia Adriana Alves, paulistana de 38 anos, acaba de ter a segunda filha. A professora de química Anna Maria “Anita” Canavarro Benite, fluminense de 39, já é mãe de três. Além de participarem do universo de mulheres que equilibram carreira e maternidade, ambas também integram o seleto grupo de 682 mulheres no Brasil que têm título de doutorado, ocupam um cargo de professora em tempo integral com dedicação exclusiva em uma universidade pública, e se declararam pretas, segundo o Censo da Educação Superior.
O número vem de um levantamento feito pelo G1 a partir dos microdados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em 2017, ano das informações públicas mais recentes, quase 400 mil pessoas davam aulas em universidades públicas e particulares do Brasil, mas só 62.239 delas, ou 16% do total, se autodeclararam pretas ou pardas.
A representação dessa parcela da população entre os professores universitários cresceu nos últimos anos, mas não muito: em 2010, os negros (grupo que engloba a população preta e parda) respondiam por 11,5% das vagas de docentes do ensino superior.
De 392.036 docentes que constam no Censo, 29,4% se recusaram a declarar uma cor ou raça. Veja infográfico do G1 com a distribuição dos demais 274.794 professores, e o histórico anual desde 2010:
Os dados mostram que, além de continuarem sendo uma minoria entre o total de professores universitários, os negros veem a representatividade racial cair conforme aumenta o grau de escolaridade desses docentes.
Uma análise entre 2010 e 2017 com o grupo de professores que autodeclararam uma raça ou cor mostra que:
Segundo Alexsandro Santos, doutor em educação pela USP e consultor legislativo da Câmara Municipal de São Paulo, o avanço se deve em parte a uma combinação de fatores: a instituição, por lei, de cotas nos concursos públicos, em 2008, e o lançamento do Reuni, o programa de expansão das universidades federais.
“Os professores brancos, que têm mais facilidade de se colocar nos mercados, não topavam ir nessas vagas do Reuni porque estavam longe das capitais”, disse ele.
De acordo com os dados, as instituições públicas apresentam desigualdade racial ligeiramente menor do que as privadas, onde 77% dos professores se declaram brancos. Porém, é nas universidades privadas que estão a maior parte das vagas de trabalho.
O crescimento lento dessa representatividade, de acordo com o especialista, indica que, se nada mudar, o Brasil levará décadas para que a proporção racial de servidores do ensino superior se equipare à da população brasileira, onde a maioria dos habitantes é negra.
Ação afirmativa na pós-graduação
Para acelerar esse avanço, Santos defende a instituição de ações afirmativas também no processo seletivo da pós-graduação como um mecanismo.
“Ações afirmativas na graduação permitem fazer um pedaço da correção das desigualdades. Só que a pós-graduação tem vetores de seleção que a graduação nem sempre contempla”, explicou ele. “Por exemplo, os programas de pós de excelência pedem prova de idioma às vezes no ingresso. Isso não se resolve necessariamente na graduação. E aí, a população negra e mais pobre fica pra trás.”
Ele lembrou que, em maio de 2016, o Ministério da Educação, instado pela Justiça, publicou uma portaria dando prazo para que as universidades e institutos federais elaborassem “propostas sobre inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (mestrado, mestrado profissional e doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas”.
No ano seguinte, a pasta informou que o processo de organização de uma base de dados com o número de negros, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós com políticas de ação afirmativa estava “em andamento”. Veja exemplos de cursos de pós com cotas.
“Não basta ser doutor, tem pontuação por publicação de artigo, a competição é muito elevada. Tem um recorte que pesa sobre as pessoas negras”, afirma Santos. “Elas não têm o mesmo acúmulo de capital acadêmico que, ao longo da história, gera uma oportunidade melhor.”
Uma análise publicada por três pesquisadoras de ciências sociais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostra que a desigualdade racial também persiste na distribuição de bolsas de formação e pesquisa e, quanto mais prestigiada a bolsa, menos acessível ela é aos negros.
A pesquisa analisou a cor ou raça declarada pelos recipientes em janeiro de 2015 de 59.160 bolsas de quatro categorias:
O número de negros e negras só se aproxima a um terço do total de bolsistas na iniciação científica, categoria com a menor remuneração.
Transformação das coisas
Uma das 27 mulheres negras do Brasil com um título de doutorado em química, Anita Canavarro cresceu sem pai e escolheu a carreira nessa área por causa de interesses despertados quando criança. Certa vez ela viu a mãe, que não tem ensino superior, mas foi professora de ciências, improvisar um cano para fazer a água de um poço chegar até a casa sem encanamento onde vivia com as duas filhas, na Baixa Fluminense.
“Nós tivemos uma infância muito pobre, e minha mãe transformava as coisas. Sempre me interessei pela transformação das coisas. Isso vai te marcando e você vai se interessando. Foi isso que me levou à química”, explicou, ressaltando que a ideia de seguir carreira acadêmica não foi planejada.
“Quando você vive privada de muitas coisas, o sonho que se tem é sair daquela situação de privação. E foi esse o caminho que eu encontrei, pelo estudo. O estudo faz promoções em termos de mobilidade social na vida de pessoas negras e pobres.” – Anita Canavarro
Anita acumula exemplos de como quase foi escanteada pelo ambiente acadêmico. Ela chegou a ser aprovada no vestibular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de primeira, mas na terceira chamada, e só descobriu depois do prazo. “A desinformação é muito grande. O edital tem normativas específicas em uma linguagem que a gente não compreende.” Para ela, o mundo universitário segue um “código simbólico de pertencimento” no qual os estudantes fora do perfil de apoio socioeconômico exigido no ensino superior não se encaixam.
Durante a graduação, para pagar o transporte até a faculdade, ela manteve diversos empregos, como vendedora em loja, shopping e polo de confecção, bibliotecária e técnica em química. Para entrar no mestrado, precisou tentar mais de uma vez o processo seletivo. Uma vez aprovada, conseguiu o apoio do orientador.
“Fiz o mestrado sem computador. Meu orientador me deu a chave do laboratório, me deu todas as condições para que eu saísse dali em pé de igualdade.”
Em 2005, ela obteve o título de doutora com uma tese na área de química inorgânica chamada “Estudos utilizando a Teoria do Funcional de Densidade da química de coordenação de derivados N-acilidrazônicos aromáticos e heteroaromáticos candidatos a inibidores de metaloenzimas Zn-dependentes”.
No ano seguinte, realizou três concursos públicos de docência – foi aprovada em todos, e convocada para dar aulas na Universidade Federal de Goiás (UFG) em 2006.
O Brasil pré-cotas
O Brasil ainda não dispunha de políticas de ação afirmativa quando Anita e Adriana Alves terminaram o ensino médio e, por isso, nenhuma delas se beneficiou das cotas raciais. Mas ambas defendem a política.
“Se tivesse as condições que existem hoje, acho que minha trajetória teria mais opções”, diz Anita. “Dou todo o crédito para o professor [do mestrado, que lhe deu a chave do laboratório], mas e se eu não encontrasse essa pessoa?”
Adriana diz que está satisfeita com sua carreira na geologia, mas que seu destino foi definido justamente por falta da opção de cotas ou bonificação. Filha de um motorista de ônibus e de uma passadeira de roupas, ela fez o ensino médio integrado ao técnico em processamento de dados e planejava seguir o histórico da família: arrumar um emprego assim que terminasse o ensino básico.
Foi inspirada por um professor a tentar o vestibular, mas logo desistiu das duas primeiras opções – computação e engenharia da computação. “Tirei a computação da vida porque sabia que não ia passar. Podia ter querido ser médica, talvez eu seria excelente médica. E tirei qualquer devaneio de fazer engenharia, porque minha nota não daria”, explicou ela.
A geologia veio por causa de um jogo de RPG e, logo antes de se formar, ela conseguiu um estágio em uma consultoria que a fez ir direto da graduação para o mercado de trabalho.
“O valor que eu recebia no estágio era mais do que meu pai, mais que a renda de todo mundo junto”, lembra Adriana, que logo virou o arrimo da família.
O ganho financeiro com o trabalho, porém, não veio acompanhado da satisfação pessoal, e ela precisou tomar a difícil decisão de largar o emprego e voltar à acadêmia.
Maternidade e produtividade
A jovem então “pulou” o mestrado e foi aceita no doutorado direto também na USP, combinado com um estágio de um ano na Universidade de Alberta, no Canadá. O título de sua tese na área de mineralogia e petrologia é “Petrogênese de plútons graníticos do leste paulista: geocronologia, geoquímica elemental e isotópica”, defendida em 2009.
Em 2010, ela foi contratada pelo Instituto de Geociências da USP como professora, e hoje é uma de apenas 129 professores da universidade que se autodeclaram pretos ou pardos, segundo dados de outubro de 2018 divulgados pelo Jornal da USP. Isso representa 2,2% do total de 5.820 docentes ativos.
Hoje com 38 anos, ela está de licença-maternidade para cuidar da segunda filha, Serena, de quatro meses – a mais velha, Flora, tem dois anos e quatro meses.
“Entre as professoras universitárias, a gente é mãe mais tarde. A gente primeiro quer o emprego, depois quer passar do [período] probatório, que na USP é de seis anos, não de três. Quando a primeira nasceu eu estava com 36 anos”, explicou Adriana Alves.
“Eu me acho mais eficiente hoje, mas a eficiência tem que dar conta de tudo: do administrativo da universidade, das inúmeras aulas, artigos e das meninas. Tudo cai um pouco.”
Adriana e Anita, que é mãe de Igor, Thomas e Sofia, com 13, 10 e 8 anos, respectivamente, fazem parte tanto da minoria racial quanto da disparidade de gênero entre os docentes. Os homens são maioria entre os professores universitários em todos os recortes raciais, mas, entre os professores que se declaram pretos ou indígenas, esse desequilíbrio é ainda maior, e chega a 58,25% e 60% do total, respectivamente.
“A universidade não está preparada para uma mulher com filhos. Ela não está preparada para uma mulher” – Anita Canavarro
Ciência tem cor?
Os microdados do Censo da Educação Superior revelam ainda outro importante debate da igualdade racial na academia: a recusa da autodeclaração. Os números mais recentes mostram que, dos 392.036 indivíduos que constam na base de dados de docentes do ensino superior, 117.242, ou 29,4% do total, se recusaram a declarar uma cor ou raça no questionário.
Desses, 51,6% têm diploma de doutorado e 66,7% trabalham em universidade pública. Desse grupo, porém, nem Anita Canavarro, da UFG, nem Adriana Alves, da USP, dizem participar, já que as duas fazem questão de declararem que são pretas.
Segundo Adriana, muitos cientistas evitam declarar uma cor ou raça porque acreditam que ciência não deveria ter cor. “É muito mais difícil fazer análise assim”, ressalta ela, que faz questão de preencher a autodeclaração para contribuir com as estatísticas. “Mas muitos dos que se veem como brancos nos EUA não seriam percebidos dessa maneira.”
Já Anita, que entre 2016 e 2018 foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABNP), acredita que esse fenômeno é produto de um processo de apagamento da identidade racial na sociedade brasileira.
“A ciência não deveria ter cor, isso é verdade. Mas a ciência que nos é ensinada tem cor e tem gênero”, afirma Anita.
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