05/07/2019 10:00

A origem simples de coisas complexas

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Clarice Cudischevitch

Foi em uma roda de samba em Niterói, no Rio de Janeiro, que o físico Bruno Mota entrou em contato com a neurociência. A partir de uma conversa informal com a pesquisadora Suzana Herculano-Houzel, ele ficou interessado em tentar entender a estrutura e o desenvolvimento do cérebro usando princípios fundamentais e técnicas da física teórica. Até então dedicado ao estudo da cosmologia, Mota investigava uma outra origem: a do o Universo.

Na época, ele terminava o doutorado na área quando descobriu que a neurocientista havia acabado de desenvolver um método de contagem de células cerebrais e estava notando algumas regularidades na maneira como os cérebros de roedores se organizavam. “Achei essa observação intrigante e combinamos de discutir o assunto um dia. Daí, publicamos um artigo em que sugeríamos que estas regularidades refletiam alguns princípios gerais universais na organização dos cérebros de mamíferos”, conta Mota.

Ele acabou seguindo em um pós-doutorado no grupo de Herculano-Houzel, no Laboratório de Neuroanatomia Comparada da UFRJ. Foi como um período sabático na cosmologia, área para a qual pretendia voltar após um ou dois anos. “Cinco anos depois, ainda estava lá, e fui contratado como professor no Instituto de Física com base na pesquisa que desenvolvi.”

O físico Bruno Mota

Mota é um dos cientistas apoiados pelo Serrapilheira. Sua pesquisa se enquadra no conceito de night science que o instituto quer promover: é aquela que ainda está entre a intuição e os dados, com um grande potencial de descobertas, mas ainda rodeada por incertezas. “Na ciência do dia a dia estamos sempre preocupados com os problemas do momento, mas é quando paramos formalmente de trabalhar que começa nossa fase mais criativa – por exemplo, quando pedalo de volta para casa, quando estou no banho ou mesmo viajando”, diz. “É aí que penso: e aquela ideia que eu não considerei, que estava no canto da minha mente?”

A night science é uma ciência arriscada, que pode não chegar, de fato, a resultado algum. A compreensão da natureza é a prioridade. A afeição de Mota a este tipo de pesquisa básica se revelava desde a graduação, quando o então estudante de Física resolveu cursar uma disciplina de matemática, teoria dos números, tradicionalmente conhecida por sua elegância teórica e inaplicabilidade prática. “Existe um antigo brinde entre os matemáticos: ‘À teoria dos números, e que ela nunca seja útil a ninguém!’”, destaca o grantee. “Mas, apesar desta fama, acabei usando a disciplina no meu paper favorito do doutorado.”

A origem da forma do cérebro

O físico considera a intuição o começo de qualquer ciência, e a sua diz que sistemas e estruturas complexas podem ser entendidos, em grande parte, por meio de modelos matemáticos simplificados, criados a partir de princípios gerais. Seu objetivo é produzir teorias testáveis que expliquem estruturas biológicas não só em um caso específico, mas em toda a sua diversidade.

Mais especificamente, Mota estuda a origem da forma do córtex cerebral, estrutura presente no cérebro dos mamíferos que é responsável pela consciência e outras funções. “Em algumas espécies, como a humana, o córtex tem uma forma semelhante a um lençol amassado. Em outras geralmente pequenas, como ratos e primatas, o córtex é quase liso. Reconstruindo a superfície cortical de mamíferos, mostramos como uma escolha criteriosa de variáveis encontra regularidades numéricas sugestivas, apesar de toda a enorme diversidade e complexidade da forma biológica”, explica.

Partindo dessas regularidades e usando princípios físicos bem estabelecidos, ele produz um modelo que explica por que alguns córtices se dobram e outros são lisos, segundo uma única regra universal. Ao ser testado, o modelo se mostra em excelente concordância com dados obtidos de córtices de mais de 60 espécies de mamíferos, do camundongo ao elefante. O mesmo fato se observa em comparações entre córtices humanos e entre diferentes regiões e escalas de um mesmo córtex.

“Essa relação pode ser usada para construir um relógio biológico morfológico capaz de quantificar o envelhecimento cerebral, e talvez no futuro possa servir como instrumento de prognóstico para certas doenças neurodegenerativas”, aponta o físico.

A ideia de encontrar uma única regra universal que explique a forma dos cérebros de mamíferos pode soar estranha. Afinal, células se constituem em órgãos, que se constituem em organismos, e nenhuma estrutura é mais complexa e intrinsecamente interconectada do que o córtex cerebral. Em humanos, por exemplo, ele é composto por dezenas de bilhões de neurônios conectados entre si por trilhões de sinapses, com atividades em escalas de tempo que vão de milissegundos a décadas.

“Este não parece ser um sistema cujas propriedades essenciais possam ser obtidas a partir de princípios básicos”, reconhece Mota. “Mas hoje, graças a avanços experimentais e computacionais, pela primeira vez dados quantitativos precisos sobre o cérebro estão ficando amplamente disponíveis. Podemos agora não só descrever em detalhes o córtex cerebral, mas também desenvolver teorias que expliquem a sua morfologia a partir de princípios fundamentais simples e que produzam previsões empíricas testáveis.”

Física, Neurociência e ciclismo

Bruno Mota encontrou no samba a interface da física com a neurociência, mas um outro gosto pessoal inspira seu processo criativo: o ciclismo. “A bicicleta é lenta o suficiente para que você possa observar o ambiente e rápida o suficiente para te levar a lugares distantes e novos. É um paralelo bom para a descoberta.” Não por acaso, sua bicicleta dobrável o acompanha em todos os eventos científicos. Após um congresso na Alemanha, em 2018, passou alguns dias pedalando por 350 km até o Mar Báltico, no norte da Europa, antes de seguir para outros compromissos no Reino Unido.

O grantee em Orkney, na Escócia, quando viajou de bicicleta pelo Reino Unido

Essa interface entre duas ciências que são, a princípio, tão distintas, não é comum. Pesquisar em biologia teórica de forma análoga à física ainda é algo raro no mundo todo e, segundo Mota, “um pouco subversivo”: “Mesmo no exterior, a maior parte dos físicos, matemáticos e cientistas da computação que trabalham na área contribuem com técnicas experimentais ou de análise de imagens e dados.” Para o pesquisador, a proximidade é maior do que parece. “Tanto a neurociência como a cosmologia tratam da origem simples de coisas complexas.”

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