24/10/2023 05:53

Artigo: A ciência de ponta vai além das pessoas brancas 

  • Diversidade na ciência

Se não ampliarmos as políticas de inclusão, cientistas negros e indígenas de excelência seguirão sendo apagados e todos os candidatos continuarão parecidos

Os selecionados na chamada exclusiva para cientistas negros e indígenas com representantes do Serrapilheira, da Faperj e professor Hélio Santos no Encontros Serrapilheira, em Tibau do Sul/RN, outubro de 2023 

Por Cristina Caldas

Este texto é a versão completa de um artigo publicado na Folha de S.Paulo, no dia 18 de outubro de 2023

Quando a candidata começou a falar, escrevi a palavra “carvão” no topo da página. É essa a minha estratégia para me concentrar na pessoa durante uma entrevista: anoto o tema central do projeto e presto atenção no modo como o pretendente fala, sua expressão, seus gestos. Só na semana passada, ouvi 28 cientistas que buscam financiamento para suas pesquisas. Era a fase final de uma concorrida chamada de apoio à ciência, promovida pelo Instituto Serrapilheira em conjunto com a Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).

A pessoa que chega a essa etapa da seleção já provou, no papel, o potencial de seu projeto. Ao explicar o objetivo da pesquisa, a doutora Thamyres Sabrina Gonçalves avançava mais um passo de um caminho trilhado, até ali, com brilho. Em sua pesquisa, vai investigar se os microcarvões das turfeiras da Serra do Espinhaço – entre Minas Gerais e Bahia – podem ser usados para reconstituir a dinâmica da paisagem até milhares de anos atrás.

Turfeiras são solos extremamente orgânicos, antigos e estáveis. Além de um depósito confiável de datação, são consideradas um dos principais estocadores de carbono da Terra. Se produzido intencionalmente, o fogo assinala presença humana. Pela datação, o carvão objeto da pesquisa de Gonçalves pode indicar uma ocupação mais antiga do que a admitida hoje nas Américas.

Como diretora do Serrapilheira – um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil -, era a sétima vez que eu selecionava candidatos em busca de apoio financeiro. Trata-se de um processo longo em que se depositam, de parte a parte, grandes expectativas. Excelência é o que buscamos, e o que os candidatos oferecem. O inédito dessa edição foi que ela era destinada exclusivamente a ecólogos negros e indígenas, um perfil distante da figura tradicional do cientista branco, masculino, vindo dos grandes centros.

Thamyres Sabrina Gonçalves, que pesquisa o microcarvão, é negra e indígena. Tem um doutorado e dois mestrados. Bastaram 30 minutos de conversa para descobrir que, para além do saber acadêmico de sua formação, ela é detentora de um tipo de conhecimento advindo de uma orgulhosa origem e de uma bagagem de vida, capaz de promover as esperadas rupturas da ciência.

Ser mulher, mãe, negra, indígena e cientista são fatores que compõem o problema e o estilo de pesquisa que ela busca praticar. Suas perguntas se entrelaçam a uma singular biografia, mas vão além. Durante a entrevista, meus colegas avaliadores e eu tivemos a mesma percepção: estávamos diante de uma candidata fora do comum. Um daqueles pesquisadores que tornam a ciência mais rica e mais provocativa.

Exatamente o que buscamos. Com Gonçalves, descobrimos outros candidatos de perfil parecido.

Nosso objetivo, ao criar uma chamada de apoio exclusivamente voltada para ecólogos negros e indígenas, era estender a esse grupo de cientistas as condições necessárias para desenvolver seus projetos e turbinar seus currículos. E, por extensão, aumentar as chances de serem formalmente integrados à academia na condição de professores universitários e pesquisadores de institutos de pesquisa. Sem esquecer da contrapartida: vindos de onde vêm, são justamente esses que podem, acreditamos, produzir um grande impacto na evolução da ciência.

Esse é o nosso sonho, mas também o plano para enfrentar, com urgência, a exclusão histórica, escandalosa, de negros e indígenas na academia brasileira.

Contém multitude

Além de selecionar candidatos em nossas chamadas, é parte do meu trabalho visitar universidades, conhecer a infraestrutura de pesquisa no Brasil e acompanhar os projetos desenvolvidos pelos cientistas apoiados pelo instituto. Nas áreas de nossa atuação – ciências naturais, matemática e ciência da computação –, raramente encontrei uma pessoa negra em cargo de professor. Índígena, nenhum ainda. Thamyres Sabrina Gonçalves, que viveu em condições hostis de moradia, incluindo a rua, reforça essa percepção, afirmando: “Fiz duas graduações, dois mestrados, um doutorado e nunca tive uma professora preta”. Em espaços de poder que frequento em que são tomadas as decisões a respeito do destino dos recursos para a ciência, Michel Chagas, meu colega no Serrapilheira, costuma ser o único negro presente.

Aqui, cabe o relato do nosso próprio percurso.

Ao longo do processo de concepção e lançamento da chamada, foram frequentes as ressalvas quanto aos cientistas a que ela se destinava. Um candidato negro ou indígena, com doutorado em ecologia, que pratique uma ciência de excelência? Para alguns, era o mesmo que procurar um marciano. O ceticismo quanto à existência de tais pesquisadores indicava, no meu entender, uma predisposição ao apagamento automático e irrefletido. Uma atitude inerente ao conceito de racismo inercial.

Na discussão sobre o recorte da chamada, foi frequente o argumento de que ações afirmativas já seriam, hoje, redundantes. Segundo o raciocínio, os programas de cotas adotados pelas universidades bastariam para que os graduandos passassem a ocupar, naturalmente, seus lugares devidos. Bastava esperar. Pior, seria razão bastante para não deixar os brancos de fora de uma chamada.

Sem recuar em nossa meta no instituto , consultamos o presidente da Faperj, Jerson Lima, com quem fortalecemos uma parceria entre as instituições. Saudações a quem tem coragem!

Lançado o edital, fomos criticados nas redes sociais por exigir projetos escritos em inglês e que os candidatos defendessem, nesse idioma, suas ideias perante um painel internacional de revisores. Apreciamos os argumentos, e reconhecemos que a exigência limitaria a participação de pessoas que nunca puderam estudar inglês. Nós também, no fim das contas, havíamos reproduzido o racismo inercial ao elaborar a chamada, e assim ajustamos o critério, passando a também aceitar propostas em português.

Ao todo, recebemos 129 propostas, entrevistamos 28 candidatos e selecionamos 12 excelentes cientistas negros e indígenas. Sim, essas pessoas existem – e são muitas. Investigam o crescimento de florestas em áreas de restauração, procuram integrar os saberes indígenas ao estudo do solo, buscam identificar novos fungos amazônicos.

Seus nomes são Bede Ezewudo, Celina Cândida Ferreira Rodrigues, Daniela Boanares de Souza, Emanuelle Brito, Fabio Brito-Santos, Fatima Arcanjo, João Paulo Felizardo, Juliana Leal, Keltony de Aquino Ferreira, Rodolfo Leandro Nascimento Silva, Thamyres Sabrina Gonçalves e Victor Felix.

A intenção de uma entrevista é ter um contato mais pessoal com o candidato. Nessa última chamada, ao falarem de si, os postulantes revelaram, a exemplo de Gonçalves, feridas e barreiras em seus percursos. A impossibilidade de acesso a um curso de idiomas é apenas um dos impedimentos que comprometem a competitividade de seus currículos nos sistemas tradicionais de seleção.

Formar um cientista, sabemos, é um empreendimento custoso e demorado. Ascender na ciência costuma exigir uma trajetória escolar impecável. Porém, o que se viu é que, no caso de cientistas cujo tom de pele é escuro, nenhuma trajetória curricular ainda será o bastante para alçá-los aos melhores lugares 

Nossa chamada toma a iniciativa de também denunciar esses mecanismos a fim de aumentar a inserção de pessoas negras e pessoas indígenas na comunidade científica.

As iniciativas de inclusão social e profissional despertam resistências desde o início. Não me limito à contrariedade manifesta por uma sociedade acomodada e temerosa de que venha a perder privilégios. Refiro-me à classe de intelectuais, acadêmicos e jornalistas que, num primeiro momento, se mostraram, por exemplo, contra as cotas de estudantes negros em universidades. Estavam, ainda, convencidos de que existia uma democracia racial à brasileira. Sob o pretenso trato afetuoso e uma discriminação nunca institucionalizada, perversidades muito mais danosas eram perpetradas. Um racismo que não dizia seu nome. Muitos mudaram de ideia, um efeito do esclarecimento, uma virtude da inteligência.

Sair do casulo

A criação do Serrapilheira, do qual faço parte desde a primeira hora, em 2017, foi um acontecimento recebido com entusiasmo pela comunidade científica. Era muito bem-vindo o apoio privado à pesquisa. Sempre nos enxergamos como uma espécie de laboratório, no qual formas de seleção e atuação poderiam ser testadas e então replicadas por demais parceiros atores do sistema nacional de fomento à ciência e tecnologia.

Nossa iniciativa, com essa chamada, foi alertar que a carreira de cientistas indígenas e negros no Brasil não possui a mobilidade esperada. Entre tantos motivos, sua ínfima presença em quadros de comando, no nosso entender, se deve a mecanismos viciados de seleção para os grandes quadros. Os postos acabam ocupados por quem estudou na escola certa, mora no bairro certo, frequenta as rodas certas. Qualquer desvio desse caminho é penalizado. Uma pesquisadora que pausou a carreira para se dedicar à maternidade, um cientista formado por uma escola não elitizada, um candidato nascido na floresta entram na disputa ocupando uma posição secundária já na largada.

No Serrapilheira, fazemos esforços para encontrar indígenas, negros e mulheres cientistas. Sem mudanças no estilo de seleção, mesmo em chamadas regulares, percebemos que continuaríamos em um casulo, onde todos os candidatos são parecidos. O valor da diversidade na ciência é a nossa crença. A visão mais ampla da ecologia virá de quem a compreende em uma vivência íntima, dela inseparável. Para nós, uma boa prática em ciência não hierarquiza os pesquisadores. Ao contrário, aproxima, faz dialogar, abre-se curiosa a todas as formas de conhecimento.

Desde que comecei a trabalhar no Serrapilheira, descobrindo e apoiando cientistas, assumi, com o instituto, que só a excelência importa. Os lugares não estão reservados.

Esses são os nossos novos excelentes cientistas. Bem-vindos.

Confira aqui os cientistas e seus projetos selecionados na chamada exclusiva para ecólogos negros e indígenas

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