Por Cristina Caldas, Kleber Neves e Michel Chagas
No Brasil, o mês de novembro é marcado por celebrações das lutas e contribuições da população negra para a construção da nação brasileira. Batizado de Mês da Consciência Negra, é também um momento de reflexão sobre os avanços e desafios na efetivação de uma sociedade realmente plural e justa.
Os debates sobre diversidade ganham cada vez mais espaço na esfera pública. Uma pesquisa de 2022 coordenada pelo Cenpec e pela Ação Educativa mostra que 91% da população brasileira com 16 anos ou mais foi favorável ao debate sobre discriminação racial. Em outras direções, há também um crescente avanço em demandas legítimas por representatividade de mulheres e pessoas negras em posições de liderança, do perfil do quadro de executivos de grandes corporações à nomeação para a mais alta corte do país.
A discussão também existe e é cada vez mais urgente dentro da comunidade científica. Afinal, tanto mulheres quanto pessoas negras, que são os maiores grupos populacionais do país em termos de gênero e de raça, estão sub-representadas nas ciências. Segundo o censo da educação superior, em 2022, no conjunto do corpo docente de instituições públicas e privadas do país, apenas 23% dos profissionais eram pessoas autodeclaradas negras. Quando analisamos a pós-graduação e as áreas de ciências exatas, da terra e biológicas, apenas 7,4% dos professores são pretos, pardos ou indígenas, segundo um estudo inédito do GEMAA/UERJ.
A plataforma Gênero e Número, por sua vez, revela que, a despeito de as mulheres serem maioria em todos os níveis de ensino (e também na obtenção de bolsas de iniciação científica e mestrado do CNPq), entre os docentes da pós-graduação, menos de 3% são doutoras negras.
Diante desse retrato da acentuada disparidade de representação nas ciências no Brasil, e aproveitando o espaço de reflexão coletiva ao longo desse mês de novembro, apresentamos um relato das práticas de diversidade na ciência que foram adotadas pelo Instituto Serrapilheira nos últimos seis anos, principalmente aquelas voltadas a pessoas negras.
O Instituto Serapilheira é uma organização privada, sem fins lucrativos, criada em 2017 com o intuito de apoiar a ciência e promover sua visibilidade no Brasil. Desde o início, a diversidade na ciência foi adotada como um valor institucional, uma prática a ser observada nas diferentes dimensões da atuação do instituto.
Ao compartilhar tais iniciativas, esperamos contribuir para a promoção da diversidade nas diversas esferas, em especial no ecossistema da ciência. Comentários, críticas e sugestões a respeito dessas ações são igualmente bem-vindos.
Extensão de prazo para cientistas mães
Desde nossa primeira chamada pública de apoio a jovens cientistas, lançada em 2017, estendemos o prazo de conclusão de doutorado em até dois anos a fim de minorar eventuais prejuízos das candidatas que são mães. Junto ao apoio para a realização dos dois primeiros simpósios do Parent in Science, em 2018 e 2019 em Porto Alegre, essas ações contribuíram com a ampliação do debate sobre maternidade e carreira. Esses foram os “abre-alas” das nossas ações para promover a diversidade.
Guia de boas práticas em diversidade na ciência
Em seguida, reconhecemos que precisávamos indicar os caminhos práticos aos cientistas e suas instituições para que adotassem ações concretas em prol de uma ciência cada vez mais diversa. Desenvolvemos e passamos a adotar o Guia de boas práticas em diversidade na ciência. Contamos com a colaboração preciosa de Marcia Cristina Bernardes Barbosa, Andre Degenszajn, Debora Diniz, Marcia Lima, Iara Rolnik, Katemari Rosa e Juarez Tadeu de Paula Xavier.
Nesse documento, escrito por Adriana Lunardi, deixamos registrado que “acreditamos que grandes resultados advêm de uma ciência praticada a partir da incerteza e do risco, e que essa é uma ciência possível quando há liberdade de ideias e pluralidade de pontos de vista. Para tanto, é essencial um grupo mais diverso de jovens pesquisadores que pensem a ciência sob diferentes olhares. Por isso, incentivamos a diversidade racial e de gênero na ciência no Brasil”. O guia trata de como compor equipes diversas, quais ações de inclusão adotar depois da contratação e como monitorá-las e acompanhá-las, com base em experiências já em curso.
Produção de dados sobre diversidade na academia
Entendemos ainda a relevância de levantar e compartilhar dados sobre o contexto de desigualdades na ciência, a fim de que eles possam orientar o desenvolvimento de estratégias de atuação. Nesse sentido, apoiamos a pesquisadora Anna Venturini no desenvolvimento do Observatório das Ações Afirmativas na Pós-Graduação e o professor Luiz Augusto Campos, que conduz um levantamento do perfil racial de cientistas das ciências da natureza.
Bônus da diversidade
Claro que apenas recolher dados não é suficiente. Assim, adotamos várias práticas e financiamos ações para impulsionar a diversidade na ciência. Uma ação que merece destaque é o mecanismo que pusemos em prática em 2019, o Bônus de Diversidade, uma sugestão da professora Debora Diniz: apoiados por meio de nossas chamadas públicas regulares, os cientistas têm a opção de acessar recursos extras para aplicar na integração e formação de grupos sub-representados. A adesão a tal mecanismo é voluntária.
Esse bônus pode ser de até 30% do valor total do orçamento original aprovado para o desenvolvimento da pesquisa. Na última chamada (6/2022), em que selecionamos 32 pesquisadores, o montante de recursos apoiado pelo Serrapilheira foi de 11,4 milhões de reais – sendo 3,2 milhões de reais direcionados para o bônus. Cerca de 28% do orçamento foi destinado exclusivamente às ações de diversidade. Confira aqui algumas trajetórias de beneficiários do bônus de diversidade.
Painéis de seleção mais plurais
Vieses inconscientes, embutidos em nossos processos seletivos, são também objeto de nossa preocupação. Autoras como Sandra Harding e Helen Longino têm apontado a diversidade como aliada indispensável na busca de objetividade na ciência. Estabelecemos, portanto, procedimentos internos para compor nossos painéis de seleção, buscando garantir em sua composição o equilíbrio de gênero, bem como assegurar que pelo menos metade de seus integrantes não pertençam ao eixo Estados Unidos/Europa, com representantes de todos os continentes e pelo menos 20% de avaliadores não brancos.
Editais exclusivos para grupos sub-representados
Apesar do cuidado com os vieses do processo e a diversidade dos painéis de seleção, seguíamos com o incômodo de que nossa chamada regular não estivesse dando conta do processo de inclusão racial no ritmo que o desafio pede: construir uma ciência mais diversa precisa acontecer de forma acelerada. Por isso, estruturamos chamadas exclusivas voltadas para grupos raciais sub-representados, sem abrir mão de continuar tornando nossa seleção mais inclusiva para pessoas que seguiram trajetórias diversas.
Em 2022, em parceria com a FAPERJ, lançamos uma chamada pública em ecologia para pós-doutorandos negros e indígenas com o principal objetivo de alavancar suas carreiras para que alcancem uma posição formal como professor ou pesquisador no médio prazo. Essa ação inédita vai assegurar uma bolsa de 8 mil reais ao longo de até cinco anos de pós-doutorado, além de destinar até 800 mil reais para o desenvolvimento da pesquisa de cada uma das 12 pessoas selecionadas.
Ao final da seleção dessa chamada, esperamos processar a reflexão de Vernā Myers, vice-presidente de estratégia de inclusão do Netflix: “diversidade é convidar para a festa, inclusão é chamar para dançar”. Dessa forma, compreendemos que a presença “física” de pessoas historicamente excluídas da prática da ciência é um passo muito importante, mas não suficiente. Precisamos valorizar as perguntas que essas pessoas querem responder, bem como dialogar com outros sistemas de produção de conhecimento e seus métodos. Temos muito a aprender e reconhecemos os desafios na implementação de iniciativas dessa natureza.
Redução dos gargalos que impedem o acesso à carreira científica
Fora o apoio a jovens cientistas já formados – que é o principal objetivo do Programa de Ciência do Serrapilheira -, também cabe pensar nas etapas anteriores de treinamento e formação de pessoas para a prática da ciência. Com o passar dos anos, entendemos a importância de identificar os desafios e gargalos nos diferentes estágios de carreira, desde a escolha do curso de graduação e a formação acadêmica até as primeiras experiências na pesquisa. Assim, o Serrapilheira apoia o projeto Oguntec, de inserção de estudantes negros do ensino médio na graduação em carreiras de ciência e tecnologia.
Já na graduação, o projeto Pluralizar consiste em um programa de permanência, concedendo bolsas para estudantes de grupos sub-representados em áreas de pesquisa pouco diversas.
Mirando uma etapa posterior da trajetória acadêmica, apoiamos o Projeto Mukengi, que capacita pesquisadores negros e indígenas a realizar pesquisas relevantes para suas comunidades.
Sabemos que ainda há muito a ser feito. O compromisso de valorizar e promover a diversidade não cabe somente em um dia ou um mês específico do ano. Para enfrentar o problema das desigualdades, que são complexas, agudas e crônicas, é preciso planejamento, orçamento, acompanhamento e avaliação permanente. O Mês da Consciência Negra é um momento importante para o exercício coletivo de reflexão e análise das ações em diferentes dimensões: privada, governamental, pessoal, coletiva e institucional na valorização e busca da diversidade. Como diz o professor Helio Santos, “a equidade materializa a igualdade e nos permite alcançar talentos que se perderiam”.
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Cristina Caldas é diretora de Ciência do Instituto Serrapilheira, e Kleber Neves e Michel Chagas são gestores de Ciência.
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